Monday, October 8, 2007

Saudade

Não é um vício, não, é uma vingança. Acontece quando acordo a meio da noite e estico os braços à procura e não sei que estou só. A cama é grande e só do meu lado está desfeita. Acordo à procura do corpo que faz falta e só tenho o meu que está a mais. Fecho os olhos, como se já não estivessem fechados, e o que está dentro de mim é uma ânsia. Então chegam imagens de um corpo antes de saber que é o dela. Um corpo não, pedaços de um corpo, pequenas alucinações. Duas mãos começam a agarrar-me as ancas e uma boca a bafejar-me a cara. É ela que fala. Ouço dizer-me as coisas que me diz e calo-me. Ouço-a chamar os nomes que me chamam e eu vou. Começo a desfazer-me para que me faça. O corpo que eu toco não é de ninguém. Quando não basta, repete, quando não basta repito. E depois há uma coisa que vem de muito longe e não quer acabar de vir. Vem a mim e eu não consigo ir a ela. Estou comigo. Não é um corpo, não. É um fugir. Um barulho. Qualquer coisa assim que vem, que agarra e passa. Um bicho. Não é um corpo não, porque os não há. Às vezes ouço-me gritar, ou julgar que grito e depois fico quieta como se corresse perigo. Começo a pensar nela e acabo a pensar em mim, os cabelos desfeitos, uma ânsia sem fim.

Pedro Paixão
Vida de adulto, 92
(adaptado)

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